A saga do comprimido
15.12.2016

Naquela manhã já acordei meio de “ovo virado”, acho que devo ter dormido nos “braços do Morfeu”, como diria minha mãe que adorava usar expressões sinistras como essas. Nunca soube e nem quero saber quem é esse tal de Morfeu, mas eu sempre imaginei um monstro muito feio que eu morria e ainda morro de medo. Pois bem, seguindo a rotina diária de tomar vários comprimidos ao longo do dia, abro impaciente (comportamento comum em mim, diriam as más línguas) a gaveta do lado da cama onde guardo desorganizadamente (outro comportamento comum em mim, de acordo com aquelas línguas ali de cima) toda a medicação que uso, abro a última caixa do JAKAVI e retiro delicadamente (ah, delicada eu sou) três comprimidinhos redondos e bem branquinhos do remédio que no momento é minha esperança de vida. Não só pela importância que possuem para meu tratamento mas por seu valor, deveriam ser guardados no cofre se eu tivesse um. Junto aos ditos cujos, outros três de diferentes formatos e cores. É até bonito de ver, cápsulas de duas cores junto às drágeas brancas e em tons nude. O duro é engolir tudo de uma vez como eu faço por pura preguiça de tomar vários goles de água ou equilibrar todos na mão até levar a boca. Na maioria das vezes dá certo e todos vão ao mesmo tempo goela abaixo. Já tive alguns que se esfarelaram na garganta, grudaram no céu da boca ou simplesmente caíram da minha mão, o que já aconteceu diversas vezes. Mas naquela fatídica manhã, o comprimido saltou, deu um duplo mortal escarpado e desapareceu. Na hora pensei, sem querer pensar - Não! Não pode ser! Não quero que seja! Abrindo a mão bem devagar, com um olho fechado e outro aberto, ou melhor, com o olho direito aberto porque com o esquerdo não enxergo nada mesmo, e gritei um palavrão de três palavras cujas iniciais são PQP! Com os dois olhos agora arregalados mas enxergando a mesma coisa, lanço mão da minha maravilhosa memória fotográfica e repito mais pausadamente P.…Q.…P! Sim, era um daqueles milionários branquinhos. Por que não foi um dos coloridos, são mais bonitinhos, mais alegrinhos e tão mais baratos e fácil de conseguir. Por que não segurei direito? Até escuto minha mãe dizendo “agora é tarde, Inês é morta”, até me arrepiei. Na minha cabeça passava um filme preto e branco, em câmera lenta, cuja trilha sonora era “ Você não me ensinou a te esquecer” de Caetano Veloso. E agora, que faço eu da vida sem você? Cantava Caetano, repetia eu. As cenas dramáticas dominavam a minha mente, os médicos dizendo que esse remédio é o único tratamento disponível e que não pode ser interrompido, o valor da caixa de quase R$ 17.000,00 (preciso de três mensalmente), a luta para conseguir judicialmente que o estado arque com os custos, o pânico de ver as cartelas se esvaziando e nada da liberação pelo estado. E agora? Não posso perder 5mg dos 30mg que preciso tomar diariamente. De repente o filme congela e me pergunto quanto custa cada um? Penso numa maneira rápida de saber o valor de cada comprimidinho saltitante. Antes, trato de tomar todos os outros que tenho agarrado na mão para não correr mais riscos. Pego papel e caneta porque sigo a tradição (antiquada diriam aquelas, sabe?), ou porque não sei usar calculadora do celular mesmo e para o meu e seu espanto cada comprimido custa R$ 283,00, ou seja, tomo diariamente algo em torno de R$ 1.700,00. Jesus me abane, me tornei um cofrinho ambulante. Acho até que vou tatuar um cifrão bem grande nas minhas costas. Será que corro risco de ser sequestrada e ter minhas fezes roubadas? Interrompo meus pensamentos porque alguma coisa precisa ser feita urgentemente, ou melhor, algo precisa ser encontrado, lembra daquela coisinha branca fujona e cara pra caramba? Pelo preço deveria ser feita em ouro 18 kilates com pedrinhas brilhantes, o que facilitaria muito para ser encontrada. Coloco meus óculos para ver de perto (sim, passei dos 40 faz tempo e daí?), fico de quatro e inicio a busca embaixo da cama. Nada além de que Dona Nair, nossa faxineira, não está fazendo seu serviço direito. Insisto e sigo procurando o infame. Encontrei uma borrachinha de cabelo, uma moeda de R$ 0,25, uma lixa de unha de estimação (perdida a tempo) e uma caneta. Sento de novo na cama e tento traçar um plano. Ele não pode me vencer, afinal sou maior que ele, mais pobre, mas mais inteligente com certeza. Já sei, vou procurar por outro ângulo, vou ficar de quatro ao contrário. Não deu para entender, né? Não é ficar como um gatinho ou cachorrinho de pernas para o ar esperando um carinho na barriga. Não! Explico: agora vou explorar os pés da cama, quer dizer não os pés em si, mas embaixo da cama na parte contrária da cabeceira. É, eu sei, acho que agora tenho que concordar com que as linguarudas diriam, estou confusa. Mas meu plano funcionou, nada como ter estratégia, planejamento e agir com a cabeça, embora tenha sido meu joelho a encontrar o danado que estava bem quietinho sobre uma flor branca desenhada no tapete. E antes que fugisse de novo, engoli a seco mesmo.
Dona Zuleica, minha querida mãe, cheia de razão deve ter dito em voz alta – viu, quem procura, acha!
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